No Tocantins, resgate à cultura indígena tem cabeças de boi assadas

difcil no levar um susto quando Sebastio Clio, 50, abre a geladeira de sua chcara em Tocantnia, cidade a 70 km de Palmas, no Estado do Tocantins. Ao lado de itens bem comuns, como tomates e uma garrafa de refrigerante, uma enorme cabea de boi encara os comensais desprevenidos que buscam apenas um lanchinho.

De olhos esbugalhados e maxilar forte, a cabea resfriada ocupa um bom espao, e ocuparia ainda mais no fossem seus chifres relativamente moderados em relao aos de outros indivduos de sua espcie. A cabea de boi ali dentro j viu dias melhores.

Mas nem tudo desesperana e sofrimento. A pea a grande estrela da Festa do Berarubu, festival realizado anualmente ali mesmo, na chcara de Sebastio. “Berarubu” significa, em tupi, “forno subterrneo”, mas tambm serve de sinnimo para qualquer alimento preparado deste modo.

No caso da festa realizada em Tocantnia, a cabea ser enterrada em um buraco de cerca de 60 centmetros de profundidade, e l ficar, coberta por brasas, por cerca de 12 horas, para s ento ser desenterrada e consumida.

Criada por Sebastio h 17 anos, a festa tornou-se uma tradio na regio. Gratuita (pagam-se apenas as bebidas), ela rene de 350 a 400 pessoas anualmente, que se refestelam nas cerca de 15 cabeas preparadas para a festana. Em cada buraco, cabem at trs peas.

Apesar de parecer baixa aos olhos de um leigo, a relao cabeas por convidados tem a chancela do nico cozinheiro que a festa j conheceu, o policial militar Antnio Ferreira Dias, conhecido como Sargento Dias quando est em servio, mas que tambm atende pelo apelido bem mais simptico de Te de Barba.

“No parece, mas tem muita carne a dentro”, garante Te. Ele apoia uma cabea em cima de uma mesa de plstico e, com uma faca, tira todo seu couro, arranca seus olhos e corta fora o focinho. Na sequncia, ele se arma de uma machadinha e arranca os chifres do animal com golpes secos.

O prximo passo enfiar uma mangueira na boca do bovino e enxaguar at que a gua saia limpa. “Se enterrar com sangue o cheiro fica forte”, diz Te.

RECEITA SIMPLES

Embalada em uma folha de bananeira, a pea colocada dentro de um lato de tinta e enterrada. E se voc acha que faltou alguma coisa nessa receita, no descuido do texto. No vai mesmo nenhum tempero, nem um tantinho assim de sal. “No faz a menor falta, a carne tem um sabor muito forte, no precisa de nada”, diz Te. “E assim ainda mantemos a tradio”.

A tradio a que o cozinheiro se refere a do preparo realizado pelos ndios xerente, naturais do cerrado de Tocantins. A reserva que os abriga comea a cerca de 50 metros da casa de Sebastio. Apesar de habitarem
o pas desde antes da chegada dos portugueses, contudo, o preparo da cabea de boi tem uma histria recente nos costumes da etnia.

Ao longo do sculo 20, a convivncia tensa com fazendeiros e moradores da regio e a situao econmica difcil dos indgenas fez com que cabeas de boi fossem consumidas mais por necessidade do que propriamente por gosto. Normalmente descartadas pelos matadouros, eram doadas aos indgenas, que ento as preparavam moda do berarubu.

Nas ltimas dcadas, aps experimentarem uma melhora na situao econmica e terem reservas homologadas pelo governo, os xerentes foram, pouco a pouco, abandonando o preparo da cabea de boi. “Os ndios no fazem mais essa receita com tanta regularidade”, conta Sebastio, natural da regio. “Aqui em Tocantins, acho que ns somos os nicos a continuarem essa tradio”.

A preocupao com a preservao do Berarubu levou at Tocantnia o projeto “Fartura Gastronomia”, que organiza festivais e pesquisa expresses culinrias Brasil afora, tendo visitado nos ltimos trs anos 20 Estados brasileiros. O prximo festival, em junho, ser o primeiro em Fortaleza.

Em Tocantnia, as cabeas continuam sendo doadas pelos matadouros da regio, embora Sebastio afirme que, nos ltimos anos, alguns deles vm querendo cobrar pela pea. “Mas no final, ningum ali consegue aproveitar a carne”, diz.

A maior preocupao de Te e de Sebastio que elas ainda venham com a lngua. ” o fil do prato”, comenta o cozinheiro, que ainda ressalva que h quem prefira a bochecha. “S no encaro o miolo.No que ele seja ruim, mas me lembra muito quiabo”. Coragem tem limite.

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