É de amor que se fala nesta coluna, a mais lida do The New York Times. Histórias verdadeiras, contadas pelos leitores. Ao domingo no DN
Quando a bateria do meu carro morreu, num dia gelado de janeiro, o meu pai recusou-se a vir ao meu apartamento, no Sul de Mineápolis, para me dar um encosto.
Ele conduz um Tesla e alegou (não muito corretamente) que ao usá-lo para carregar a bateria de um carro normal o dele entrava em curto-circuito. “Além disso, está desagradável lá fora”, disse, “e, como sabes, o teu pai é um mariquinhas.”
Felizmente, o meu padrasto, Kevin, acedeu a ajudar-me. Calvo, esbelto, amigável, anda sempre bem barbeado e gosta de ser útil. É engenheiro agrícola, com mestrado em ciência das plantas daninhas e assina revistas como a Vida do Trigo. Sabe sempre as horas certas. “Estarei aí dentro de 15 minutos”, disse. Quinze minutos depois chegava ao meu apartamento.
Pensei que esta seria a minha oportunidade para, finalmente, o impressionar. No inverno anterior tinha-lhe ligado em aflição quando o meu carro ficou com um pneu furado. Eu não o sabia mudar e ele teve de o fazer por mim, de joelhos, ao frio, numa rua movimentada.
Ele já tinha também, em várias ocasiões, reparado canos na minha cozinha e tinha-me ajudado a montar (ou seja, montou ele) uma secretária do Ikea. Perto dele, sentia-me inepto e, embora fôssemos educados um com o outro (até mesmo simpáticos), tenho a sensação de que ele me vê como o desventurado filho da mulher, parte do pacote do seu casamento com ela.
Contudo, eu sabia como dar um encosto a um carro e aproveitei para fazer uma demonstração de como colocar os cabos no sítio certo. “O vermelho liga-se aos polos positivos”, disse convictamente.
Kevin fixou as garras correspondentes à bateria da sua carrinha e disse: “Vamos experimentar.”
Rezei para que o encosto funcionasse e a minha competência passasse a ser um dado adquirido daí em diante. Do lado de fora do carro, Kevin virou solenemente o polegar para cima. Girei a chave. O motor engasgou-se e não pegou. Tentei novamente. Nada. “Parece que vais precisar de uma bateria nova”, disse Kevin.
Ele e a minha mãe tinham-se conhecido há sete anos através de um serviço de encontros chamado It”s Just Lunch. Eles descobriram interesses comuns nas caminhadas e no vinho. Fizeram viagens de enoturismo, primeiro no Minnesota rural, em seguida no Vale de Napa e na costa do Oregon. Nas suas caminhadas, eles usavam roupas com muitos bolsos e fechos. À noite, visitavam adegas. Passado um ano estavam noivos.
Fiquei aliviado quando eles se casaram. A minha mãe tinha passado os últimos anos num estado de grande perturbação. Uma década antes, sem aviso, o meu pai tinha-a informado que era gay e o casamento deles acabou. O futuro que ela esperava (simplesmente estar com ele) acabou também. No lugar dele não havia nada.
Tinha 16 anos na altura e durante os meus dois últimos anos do secundário vivemos só os dois. Para ela, foi uma época de roupões, insónias, chás para adormecer, lenços de papel, racionalização (“tudo acontece por uma razão”), restos reaquecidos e preocupações.
Kevin apareceu como um pilar de estabilidade.
A minha relação com ele evoluiu lentamente e, por vezes, de forma desajeitada. Nós éramos sócios do mesmo ginásio e, por vezes, encontrávamo-nos no balneário. Se estávamos ambos nus, fazíamos questão de falar, como se isso nos protegesse do leve constrangimento da nossa nudez, do drama edipiano. A nossa conversa era cerimoniosa e breve: “Olá! Como está?” “Bem.” “Que bom!” “OK. Foi bom ver-te.” “Sim!” (As exclamações são minhas.) Mas, na verdade, é assim que somos sempre. Se saímos para jantar fora ou nos encontramos por acaso no supermercado, continuamos a agir como se estivéssemos nus no balneário.
Agora, eu perguntava-me como poderíamos levar o meu carro a uma oficina para substituir a bateria. Kevin fez saber que iríamos mudá-la nós próprios.
Tirou a caixa de ferramentas da traseira da carrinha. “Sim, ela está sempre comigo”, disse. Os alicates e chaves de fendas brilhavam lá dentro como se nunca tivessem sido utilizados. Não, era como se tivessem sido usados frequentemente, mas extremamente bem limpos depois.
Tirámos as luvas e começámos a trabalhar. A temperatura estava negativa. Os pingos congelavam nos nossos narizes. A nossa respiração ficava a pairar por cima de nós.
Kevin afrouxou os parafusos que seguravam a bateria no sítio. Coloquei as porcas numa caneca de café que andava no meu carro para que não as perdêssemos. Segurar a caneca era o meu trabalho. Depressa ficámos com as mãos dormentes e a doer. Quando Kevin já não conseguia sentir os dedos sugeriu que nos aquecêssemos dentro da carrinha dele.
O interior da carrinha, tal como a sua caixa de ferramentas, estava impecável. Ele não tinha deixado qualquer marca no interior da carrinha desde que a possuía. Mas depois pensei: não, a arrumação era a marca de Kevin. Ele é um homem organizado e a carrinha é a expressão máxima dessa organização. O rádio estava sintonizado no jogo de apuramento Vikings-Seahawks. Teddy Bridgewater fez um passe incompleto. Os Vikings, como sempre, pontapearam.
“Não está a correr bem”, disse eu. “Quero dizer, não parece estar. Ah.”
“Não”, respondeu Kevin.
Assim, a nossa conversa chegou ao fim.
O telefone vibrou no meu bolso – era o meu pai. A sua mensagem dizia: “Quadro pronto. Favor levantar.”
Tínhamos passado recentemente duas horas numa loja de molduras a ouvir a opinião um do outro sobre a melhor forma de emoldurar uma estampa de um navio de comércio holandês. (“Olha, filho, não vais querer que a moldura domine o quadro. E o passe-partout deve ter um pouco de cor, mas, novamente, não vais querer que ele domine.”)
O meu pai e eu conseguíamos mandar emoldurar artisticamente um quadro, mas não conseguíamos substituir uma bateria do carro. Se entregues a nós, os nossos aparelhos avariavam e ficavam avariados até que pagássemos a alguém para os reparar. A minha herança era uma dose moderada de elegância e um conjunto de capacidades motoras deficientes. Enquanto escrevia uma mensagem a lembrar-lhe que estava momentaneamente sem transporte, o ecrã do meu telefone apagou-se. A sua bateria tinha morrido também.
A loja das baterias, uma construção retangular com um par de chaminés no topo, assemelhava-se a uma bateria. Quando os meus óculos desembaciaram, vi baterias de todos os tamanhos a brilhar nas prateleiras. Eu carregava a minha bateria morta nos braços sentindo-me um pouco idiota com aquilo, como se estivesse a levar o meu próprio croissant meio comido para uma pastelaria.
O jogo dos Vikings estava a dar na rádio aqui também. Seis funcionários estavam à volta de um balcão, olhando para cima, para um altifalante no teto. Um deles mencionou quantas jardas o running back dos Vikings tinha acumulado durante a temporada. Outro lembrou quantas tinha ele há dois anos. Um terceiro acrescentou quão próximo ele estava de bater o recorde da temporada.
Eles estavam a jogar um jogo próprio, como os homens costumam fazer: um jogo de informação, para ver quem sabia mais. Finalmente, um dos funcionários viu-nos e aproximou-se.
Eu expliquei, segurando a minha bateria morta, que precisava de uma bateria nova. O funcionário levou-nos a uma prateleira e mostrou-nos três que pareciam iguais. Explicou porque não o eram. Tudo o que eu entendi foi que os preços eram diferentes. Kevin sugeriu que eu comprasse a segunda mais barata – o que eu teria feito de qualquer modo, aplicando a teoria sobre os vinhos que uso nos restaurantes.
Enquanto pagava, os Vikings falharam um golo de campo que teria ganho o jogo, por isso perderam. Muitos conhecedores do Minnesota tinham previsto isso e ao prevê-lo tinham tido a secreta esperança de que tal acontecesse, o que, de uma forma retorcida, transformou a derrota numa vitória. O funcionário olhou para o altifalante. “Tal qual como em 98”, disse.
“Os Atlanta Falcons”, disse Kevin. “Gary Anderson.”
“O primeiro golo de campo que ele perdeu em todo o ano.”
Eu compreendi as regras do jogo, mas não consegui participar. Eu era um espectador do meu sexo.
Enquanto instalávamos a nova bateria, a dinâmica entre mim e Kevin não mudou. Eu fiquei a seu lado segurando na caneca das porcas e parafusos. De vez em quando ele apontava, orientando-me a direção da lanterna sob o capô. Trabalhava depressa, falando raramente. Na verdade falava tão pouco que nunca falou. Mas o nosso silêncio era descontraído; estávamos unidos na nossa tarefa.
Quando os dedos de Kevin ficaram dormentes, ele entregou-me a chave. Sem uma palavra, acenou com a cabeça. As minhas mãos estavam igualmente frias, quase inúteis. Mas vi que era importante para ele que eu terminasse o trabalho no meu próprio carro. O meu cérebro disse à minha mão para se fechar em torno da chave e não a largar, para que a minha incompetência não se revelasse. Em breve, a nova bateria estava instalada.
Entrei no carro. Do lado de fora, Kevin virou solenemente o polegar para cima. Não sorriu quando o motor pegou, mas ao não sorrir, sorriu.
“Tens tudo pronto”, disse ele.
Tirámos as luvas e apertámos as mãos. As nossas mãos estavam geladas e insensíveis, mas tínhamos-lhes dado um bom uso. Através delas, tínhamos comungado e comunicado. E senti que o nosso aperto de mão tinha completado a nossa conversa na linguagem secreta da intimidade masculina, uma língua em que eu ainda estou com dificuldade em ganhar fluência.
Max Ross é escritor e vive em Mineápolis