Os atletas do vinho

“E agora algo completamente diferente”…

Permita-me, caro leitor, começar esta crónica com uma declaração de interesses: para além de outras, mais e menos importantes, o Direito, o Desporto e o Vinho são três das grandes paixões da minha vida. Também por isso estudo, ensino e advogo no Direito do Desporto, e me interesso cada vez mais pelo Direito da Vinha e do Vinho.
Surge o tema desta crónica muito por causa de algumas leituras dos últimos meses, que me fizeram reflectir sobre a trilogia Direito/Desporto/ Vinho.

Evoco, primeiramente, o espanto com que, lendo a edição de Março da Revue des Vins de France, me deparei com a existência do vinho francês denominado Les Athlètes du Vin, em cujo rótulo figura o desenho de um atleta da canoagem, numa expressiva pagaiada. Confesso que, minimamente atento que procuro estar ao regime legal francês – muito restritivo quanto à associação entre vinho e desporto, em particular à publicidade do vinho no contexto desportivo –, me surpreenderam a marca e o rótulo daquele vinho.

Chegados entretanto a Maio, a nova edição da Revue des Vins de France, na secção de actualidades, destaca a polémica em torno do facto de o vinho oficial do Tour de France não ser um vinho francês, mas sim um vinho chileno (da Cono Sur) – cuja marca, diga-se, não podia ser mais apropriada: Bicicleta.

Para além desta questão jurídico-comercial, outra me cativou: o destaque dado às recentes alterações legislativas que permitem que os comentadores do Tour possam falar, na antena, dos vinhos e do enoturismo, enquanto os ciclistas atravessam as regiões vitícolas. O artigo não aprofunda esta questão, mas no essencial o que está em causa é o facto de – depois de uma rejeição, em primeira leitura, de uma proposta de revisão do Código da Saúde Pública, de uma reintegração dessa proposta no projecto de Lei Macron, e do ‘retoque’ formal final dado pelo Conselho Constitucional – se ter contornado parte da força restritiva da famosa Lei Evin (já de 1991). Assim, considera-se que “informação enológica” não é sinónimo de publicidade, pelo que tal informação escapa à restrição legal de promoção de produtos alcoólicos …

Lendo este último artigo pensei no nosso País, no nosso desporto sempre carecido de fontes de financiamento alternativas aos dinheiros públicos (pese o Mecenato Desportivo previsto no Estatuto dos Benefícios Fiscais, e não obstante o meritório e crescente trabalho do movimento associativo e da Fundação do Desporto para captar investimento privado para o desporto). Pergunto: não será o nosso vinho, que ombreia com os vinhos franceses, italianos, espanhóis, chilenos, argentinos, australianos ou sul-africanos (se é que não os supera mesmo) um veículo privilegiado, em associação com o desporto, de promoção do nosso País extramuros?

Sim, temos provas desportivas, sobretudo de running, no meio de vinhas – por exemplo, uma prova na Quinta do Gradil e outra no Douro Vinhateiro apostaram, e bem, nesse nicho. Outro exemplo paradigmático é a 2.ª edição do Grande Prémio do Dão (28 e 29 do corrente mês), sendo eloquente o mote partilhado pelo Presidente da Câmara de Viseu, Almeida Henriques: “[a prova] projecta a modalidade numa região que gosta de ciclismo, mas também promove o vinho do Dão e a actividade turística”.

Mas será que devemos/podemos fazer mais? E aqui lembrei-me, de pronto, de uma crónica de Rui Falcão, no jornal Público (O estranho mundo do vinho, Fugas, 5 de Março de 2016, p. 20), onde se assinala que “(…) os grandes rivais do mundo do vinho, as empresas cervejeiras e as empresas de bebidas espirituosas (…) definem estratégias coerentes e estáveis, patrocinam festivais mediáticos, eventos e equipas desportivas (…), empresas dinâmicas e com capacidade para investir somas consideráveis em campanhas publicitárias visíveis e duradouras.”

Provavelmente aquele renomado crítico de vinhos estaria a pensar em exemplos de sucesso como a Carlsberg Cup, a Liga Zon Sagres, ou a bancada Sagres (Estádio da Luz), casos de utilização do naming como forma de publicidade de bebidas alcoólicas. Ou ainda, porventura, no patrocínio da Sagres à nossa selecção nacional (questão não isenta, diga-se, de discussão jurídica). Um desafio, pois, para o tecido empresarial vitivinícola.
Mas isto não acaba aqui …

Ainda a reflectir neste dilema entre o dever e o poder, deparei-me nas bancas com o número de Maio da Wine Enthusiast, edição com um especial enfoque no desporto (The Sports Issue), em cuja capa surge, sentado numa poltrona, com um copo de vinho na mão, Dwyane Wade, estrela da NBA, que já tem um vinho com o seu nome: Wade.

Comprei a revista e, entre vários atletas e treinadores, no activo ou já retirados, chamaram-me a atenção as entrevistas concedida pelo futebolista Andrés Iniesta, sobre a sua Bodega Iniesta; pela nadadora Natalie Coughlin, detentora de 12 medalhas Olímpicas, e sobretudo, pelo tenista Roger Federer, firmemente empenhado na sua causa de “embaixador da marca Moët et Chandon”. O suíço surge ao lado de um copo e de uma garrafa, ainda que mais discreto, por exemplo, do que na foto publicada na revista Sport Vie, de Janeiro último, na qual sorri segurando uma enorme garrafa do famoso champanhe em questão …

Perante tal, voltei a ‘falar para os meus botões’, perguntando-me: faz sentido um atleta de nomeada, ídolo de multidões, seguido por muitos jovens (incluindo menores) promover o vinho, uma bebida alcoólica? Será esse um exemplo de estilo de vida saudável (sobretudo se não acompanhado do aviso para que se beba com moderação)? Deverá uma situação desta ser tratada da mesma maneira que um caso de um anúncio, por um atleta, a um refrigerante, um doce ou a fast-food?

Mas deixei-me depois de dúvidas desta natureza, para me recentrar na minha pele de jurista. Fui olhar a lei portuguesa, recuperar reflexões pessoais passadas e ainda reler textos sobre o tema, um de João Lima Cluny e Jorge Morais Carvalho, e outro de João Veiga Gomes. Venha, comigo, caro leitor, nessa viagem.O tema justifica, creio.

Ora nós somos o País em que não se pode vender nem consumir bebidas alcoólicas no interior dos recintos desportivos (com excepção, é certo, dos camarotes …) e em que, por exemplo, na Lei da Violência Associada ao Desporto e na Lei dos Ginásios prevemos que deve abandonar o recinto desportivo o espectador ou o utente que se revelar embriagado.

Nós somos o País em que, para afastar os jovens do consumo de bebidas alcoólicas, (i) se consagrou recentemente a proibição de venda de bebidas alcoólicas a menores de 18 anos [antes esse limite mínimo ficava nos 16]; (ii) se veda a associação, implícita ou explícita, de marca ou marcas de bebidas alcoólicas a qualquer comunicação comercial ou publicidade, designadamente a actividades desportivas, em “eventos em que participem menores” [entendendo-se, direi que à luz da legislação da UE, que estão em causa eventos especialmente destinados a menores – por exemplo a recente 1.ª TSF Kids Race – e não outros eventos em que um ou mais menores possam participar]; (iii) se proíbe publicidade em que os menores apareçam a consumir bebidas alcoólicas; (iv) se interdita a exibição ou publicidade de bebidas alcoólicas no decorrer de qualquer evento desportivo “em que participem menores”.

O nosso Código da Publicidade também (v) veda publicidade a bebidas alcoólicas, na televisão e na rádio, até às 22h30 e (vi) não consente publicidade a bebidas alcoólicas se esta associar o consumo de tais bebidas ao exercício físico.

Face ao exposto, e sem prejuízo dos referidos limites legais, é de concluir que também nós podemos ter um vinho com marca do tipo Atletas do Vinho ou Bicicleta, porventura associando-o comercialmente a modalidades desportivas/eventos desportivos, com proveitos financeiros mútuos. Como nos é permitido publicidade a vinho nos recintos desportivos, por esse País fora. Ou os referidos namings. E também podemos ter atletas de renome, maiores de idade, a publicitar vinho em diferentes suportes, até mesmo nas camisolas (não será, em minha opinião, um caso em que se associa o consumo de vinho à performance desportiva) – caso em que, se participarem em provas no estrangeiro, darão uma ajuda às exportações vínicas lusas…

O tema não é fácil, nem linear, como se compreende. E também não é novo: se recordarmos alguns projectos de lei e, duas relevantes Resoluções do ano 2000 (da Assembleia da República e do Governo), percebemos que para muitos nem deveria haver espaço para o binómio desporto/vinho. Mas penso que devemos pensar na melhor forma de compaginar a protecção da saúde pública com a sustentabilidade económico-financeira das organizações desportivas e seus agentes, maximizando as valências do nosso vinho, que é ímpar. De forma proveitosa para todos os sectores.

Penso, por fim, que a trilogia Direito/Desporto/Vinho deve, cada vez mais, ser analisada, aferindo das possíveis interacções e suas consequências. Ora já que estamos em ano de Jogos Olímpicos, um bom ponto de partida para essa análise poderia ser relembrar o insólito caso, já de 1996, em que o Tribunal de Grande Instância de Paris deu razão ao Comité Nacional Olímpico e Desportivo Francês, contra a Societé Henri Maire, que produziu uma série de garrafas de vinho em que aparecia a foto do Barão Pierre de Coubertin, junto de algo parecido com os anéis olímpicos, com uma representação da chama olímpica, e com uma medalha … à revelia da Carta Olímpica e da legislação sobe propriedade industrial.

Interessante, não é? Tanto por explorar …

P.S. Uma última nota, tentando estimular o alargar do espectro do debate: em Março, José Couceiro, homem muito experiente em diferentes funções no futebol, conhecedor como poucos do perfil dos jogadores de futebol, afirmou o seguinte: “Em determinadas situações não é prejudicial que os atletas bebam um copo de bom vinho à refeição, mais ainda quando alguns estão habituados a fazê-lo em casa. Há que ter em consideração também as questões culturais que, naturalmente, variam de país para país.”

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Alexandre Mestre é advogado, consultor na Abreu Advogados e também docente de Direito do Desporto. É ex-Secretário de Estado do Desporto e Juventude
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