Tazara: o trem africano de 52 horas

Relato por Antônio Soletti

Esqueça aquelas listas dos “10 trens mais incríveis e luxuosos do planeta”. Ou então as “20 estações de tirar o fôlego ao redor do mundo”. Em nenhuma dessas listas você vai encontrar o Tazara, o trem que liga a região central da Zâmbia à capital da Tanzânia, Dar es Salaam. Mesmo assim, não é por isso que este trem deixa de ser uma experiência incrível. Até arrisco dizer que, se criassem uma lista com os “10 trens perfeitos para uma boa aventura”, o Tazara brigaria pela primeira colocação. Mas afinal o que faz com que essa viagem pelo coração africano seja inesquecível?

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Primeiro, é o tempo de viagem. Em média, são 52 horas de percurso. Digo em média, porque existem tantos imprevistos e paradas ao longo do caminho, que nunca se sabe em qual dia, e muito menos a que horas o trem vai chegar ao seu destino final. São quase 2 mil quilômetros de ferrovia e dois trens operando ao mesmo tempo. Um deles sai da Tanzânia com destino a Kapiri Mposhi, na Zâmbia. O outro, faz o trajeto contrário. Os dois se encontram na fronteira entre os países, e lá os passageiros devem trocar de trem para seguir viagem. Para quem faz o trajeto da Zâmbia para a Tanzânia, um problema a mais: Kapiri Mposhi é uma cidadezinha –quase um vilarejo– distante cerca de 200 quilômetros da capital Lusaka. Portanto, para chegar até a estação de partida, você vai precisar encarar outro trem ou ônibus antes de embarcar definitivamente no Tazara.

Descobrir informações básicas sobre datas, horários e preços é mais uma das tantas dificuldades. Tive que pesquisar muito, mas muito mesmo até encontrar um site que, volta e meia, atualiza as informações sobre o trem graças à colaboração de pessoas que fizeram a viagem recentemente. O endereço do site é www.seat61.com. Foi nesse mesmo site que descobri mais uma pedra no sapato de quem deseja embarcar no Tazara: ele só parte da Zâmbia às terças-feiras e sextas-feiras. Como não existe nada para fazer em Kapiri, recomendo se programar para chegar lá só no dia do embarque, ou com um dia de antecedência. Se você estiver em Lusaka nos dias anteriores, pode aproveitar e garantir sua passagem no escritório da Tazara, bem ao lado da caótica rodoviária. Eles não aceitam reservas, e mesmo que você tente fazer por telefone, não é aconselhável por motivos de desorganização e esquecimento. Apesar disso, a boa notícia é que, quando peguei o trem no começo de dezembro de 2014, eram poucas pessoas viajando na primeira classe. Então, acho que dificilmente vendem todos os lugares.

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Espera aí: primeira classe? Sim. Mas calma que isso não vai colocar de jeito nenhum o Tazara na lista dos “10 trens mais incríveis e luxuosos do planeta”. Neste caso, primeira classe não significa luxo. São apenas os vagões com cabines para até quatro pessoas e com bancos que viram camas. Dois bancos inferiores e dois bancos superiores, que lembram dois beliches. Basta esticar o lençol que te dão no início da viagem, usar a própria mochila como travesseiro e desfrutar de toda a falta de conforto do banco-cama. Quem bom que são só 52 horas de viagem! Mas eu garanto: ainda é melhor do que viajar enlatado num avião. Dentro da cabine há uma mesinha para refeições em frente à janela e um ventilador enferrujado que não funciona. Os banheiros, além de precários, tinham uma dinâmica que não compreendi até agora. Às vezes tinha água, outras vezes, não. E geralmente quando o trem estava parado em alguma estação, os banheiros eram trancados. Tentei evitá-los ao máximo e nem banho arrisquei tomar.

Surpreendentemente, o trem parte pontualmente às 16 horas. Pelo menos foi assim na minha vez.  Durante toda a viagem é possível caminhar pelos corredores de todos os vagões, que balançam muito. Havia momentos eu que eu jurava que o trem iria virar. Normalmente, eu caminhava até o vagão-restaurante. Ali podia comprar comida, refrigerante, água e até cerveja na temperatura ambiente, que pode ser muito alta durante o dia e relativamente baixa à noite. Tudo depende da região por onde estamos passando. Aliás, isso é uma das coisas bacanas do trem: observar como a paisagem e o clima vão mudando ao longo do caminho. Saímos da savana seca e com árvores dispersas da Zâmbia para as florestas úmidas e densas da Tanzânia.

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Deixando de lado todas as dificuldades, problemas e a falta de conforto, chegou a hora de falar do que afinal mais vale a pena nesse trem: a experiência e o contato com o povo africano. Tirando os nativos, que talvez não tenham outra opção mais acessível para se deslocar, ninguém pega o Tazara para realmente ir de um país para o outro. Por isso, todo turista que está lá dentro, está pela experiência. E posso afirmar com toda certeza: se você gosta de aventura, de conhecer lugares que nunca imaginou visitar, de viver uma realidade completamente diferente da sua e ainda passar um pouco de trabalho, o Tazara é o paraíso.

Durante todo o percurso, o trem passa por dezenas de vilarejos e tribos. É até emocionante ver as pessoas acenando para o trem e as crianças correndo até os trilhos. Parece que, ao passar por ali, o trem espalha uma alegria contagiante entre todos aqueles que vivem praticamente na miséria. Algumas paradas acontecem em estações ao longo do trajeto, e são nesses momentos em que a gente consegue ter um contato mais próximo com a vida africana. Crianças vêm até a janela vender todo o tipo de coisas, de frutas até galinhas vivas. Já as mulheres, equilibram cestos e bacias com comidas e bebidas típicas. Em alguns lugares, a gente sente que a situação é pior. Numa das primeiras paradas, ainda na Zâmbia, enquanto os funcionários do trem reabasteciam os vagões com água, vi crianças aproveitando cada gota desperdiçada para encher suas garrafas plásticas e baldes. Para muitos, o Tazara é uma oportunidade de conseguir um pouco de água, duas vezes por semana.

Após 22 horas de viagem, o trem chegou na fronteira entre os dois países. Lá, os passageiros foram obrigados a desembarcar para fazer os trâmites da emigração e trocar de trem. Porém, a locomotiva que vinha da Tanzânia estava atrasada, então tive que esperar mais 4 horas até ela chegar. Nesse meio tempo, eu, meu parceiro japonês de cabine, Riki, e duas suecas aproveitamos para dar uma volta em Nakonde, a cidade localizada na fronteira. Guiados pela simpática comissária de bordo do Tazara, fomos desbravar a pobreza e o caos daquele lugar. Era uma grande favela. Não há outra definição. Não existiam ruas predeterminadas, o chão era de terra batida, muitos casebres com teto de palha e crianças brotando de todos os cantos. Fomos até a parte central da cidade, que nada mais era do que um camelódromo a céu aberto. Lá, existiam muitas tendas, e também vários vendedores que estendiam um lençol no chão e negociavam os seus produtos. Tinha de tudo: açougue sem nenhuma refrigeração, oficinas de bicicleta, salões de beleza que vendiam brazilian hair, e gente negociando roupas baratíssimas e até tênis usados.

Finalmente, o trem que vinha da Tanzânia chegou. Desconfio que ele tinha menos vagões e cabines, porque eu e o japonês ganhamos a companhia de dois zambianos. O trem andou poucos metros até cruzar a fronteira com a Tanzânia e parou novamente. Alguns policiais entraram para carimbar os passaportes e conceder o visto ao preço de 50 Dólares. Esta foi a alfândega mais engraçada que já passei na vida, porque nem precisei sair da cama. Eu estava deitado no banco superior e só precisei esticar o braço para entregar o dinheiro ao oficial e ganhar o carimbo no passaporte. A viagem seguiu e logo o dia deu lugar à noite. No jantar, as mesmas opções de sempre: carne vermelha com legumes ou frango frito, acompanhados do bom e velho arroz branco ou ugali, uma espécie de polenta de farinha de milho.

Depois de mais uma noite inteira chacoalhando e rezando para o trem não capotar em cada curva, o cansaço começou a aparecer. Entramos no terceiro dia de viagem, agora com paisagens bem bonitas. O trem atravessava montanhas e florestas, cruzava muitas pontes e passava por vários túneis, um atrás do outro. Passei horas numa janela tirando fotos, filmando e imaginando como deve ter sido difícil construir aquela ferrovia muitos anos atrás. E o tempo não passava. Já era noite quando o Tazara finalmente começou a se aproximar de Dar es Salaam, o destino final.

Depois de 52 horas de viagem, ou 1860 quilômetros, chegamos à Tanzânia. Durante todo esse tempo, eu poderia ter aproveitado a beira da praia, em Zanzibar. Ou então ter percorrido essa quilometragem pela linda costa da África do Sul. Mas a verdade é que meu espírito aventureiro mais uma vez me levou para o lugar certo. Passar todo esse tempo dentro do Tazara me fez viajar e conhecer uma África verdadeira. Bem longe das regiões turísticas e bem perto de quem realmente faz dessa terra um lugar especial: o povo africano.

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