Sempre senti algo de mgico no preciso momento em que cruzava o controle de passaporte antes de viajar. Sempre cheguei atrasado ao aeroporto, sempre esbaforido, cheio de tarefas incompletas, tentando resolv-las at o ltimo segundo.
Mas houve tempo em que no havia telefone celular. Nem laptop com wi-fi. Ento, depois do apressado check-in, restava cruzar a Polcia Federal –e pronto: Ins era morta, e o que no havia sido feito a tempo j no o seria mais. Uma sbita paz me tomava. Era relaxar, abrir o livro, beber algo e aguardar a chamada final.
Ah, algo ainda se podia fazer, um derradeiro elo com o mundo frentico que estava ficando temporariamente para trs: buscar um orelho (sabe? lembra? telefone pblico –nas salas vip era de graa) para ligar para a famlia e se despedir, algo que apenas uma vez no consegui fazer porque o sujeito baixinho minha frente no largava o aparelho, tantas vezes repetia, como um mantra, “Fica com Deus, Assria” (o baixinho engravatado era o Pel).
Ainda hoje prezo muito os momentos em que posso enclausurar-me por algumas horas no isolamento daquele casulo areo. Claro, detesto o desconforto das viagens –que pode mudar de intensidade, mas sempre existe, por mais luxuosa que seja a classe em que voamos. Mas dado que o desconforto inevitvel, pelo menos tento tirar o mximo proveito daquele momento de vida interrompida.
Para comear, prefiro (e sou a nica pessoa que conheo) fazer os longos voos durante o dia. Uma das razes particular: sempre durmo muito mal no avio, qualquer que seja a classe do bilhete (claro, na econmica, dorme-se pior que na primeira classe; mas, no meu caso, ao contrrio de conhecidos que dormem sentados em qualquer lugar, nunca consigo relaxar e descansar, seja qual for o conforto da cadeira).
Resultado: em uma longa viagem de avio, quando nos horrios habituais, costumo perder a noite, lutando contra o cansao e tentando dormir, e ainda perder boa parte do dia seguinte, tentando me recuperar, o que particularmente cruel quando a viagem a trabalho e j na chegada h compromissos espera.
J viajando num voo diurno, no lugar de perder uma noite, ganho o dia: dez horas de isolamento, sem telefone, campainha, e-mail. Tempo para se concentrar lendo e escrevendo, vendo um filme, tirando uma soneca, ouvindo msica.
Como eu disse, antes esse estado de vida suspensa comeava exatamente na checagem do passaporte na Polcia Federal, momento equivalente entrada das primeiras gotas de Dormonid veia adentro antes dos exames mdicos que exigem sedao (aquela hora em que nos mandam contar at dez e j no trs o mundo gira enquanto nos traga num gentil rodamoinho para o sono profundo –mas s se for Dormonid: um tal Propofol que a cincia anda nos impondo brutalmente instantneo, sem qualquer romantismo lisrgico).
Assim era no passado. Depois, o excesso de conectividade instantnea trazida com o passar do tempo empurrou minutos frente o instante mgico daquela paz sbita. No lugar de se impor no momento em que, passada a polcia, no voltamos mais atrs, teve que ser adiada para quando se fecham as portas do avio –pois at l os celulares, tablets e laptops nos mantm com o cordo umbilical atado aos compromissos que ansiamos deixar para trs.
Pelo menos era assim at que comearam a implantar conexo de telefone e dados nos avies, para que se possa telefonar e “navegar” no ar. Por sorte ainda so servios caros, e pouco usados; mas por quanto tempo resistiremos –resistirei– a eles?