Visão | Quando Miguel Laffan joga com o açúcar e o sal, ficamos de …


Tataki de atum sobre mil-folhas com chutney de manga e cebola-roxa, rissol de bacalhau de cura amarela frito em pão ralado e tinta de choco, ostra do Sado com um céviche de cherne, puré de banana e espuma de ostra, e croquete de alheira com coulis de bergamota

Mário João

Cabeça de xara, tártaro de lagostim, puré de funcho, salada de cenouras com maracujá e bergamota

Mário João

Tom Yun Kung L’AND 2016

Mário João

Pregado corado com mini-legumes biológicos salteados em gengibre, lima e erva-príncipe, num caril verde de manjericão

Mário João

Salmonete de Setúbal na salamandra com açorda de berbigão, lulas salteadas e caldo de caldeirada com pimentos crocantes

Mário João

Peito de pato curado em citrinos, pak choi, amendoim e soja

Mário João

Brownie de caramelo e flor de sal, calda de chocolate branco e manjericão com sorbet de yuzu

Mário João

Textura de framboesas, gelado de chocolate branco e mirin

Mário João

Gomas de vinho tinto, recriação de Perna de Pau, côco e framboesa, tronco (trufa) de chocolate

Mário João

De início nem damos pela importância das amêndoas. Tiramos uma e outra e outra e outra, numa compulsão infantil que só se desculpa quando ouvimos que foram caramelizadas em açúcar, caril e flor de sal. Mas o almoço ainda não começou e achamos que elas não têm nada a ver com o que se vai seguir.

Miguel Laffan, chef do L’AND

Mário João

Alguém no grupo de jornalistas e críticos gastronómicos, mais experimentado nas delícias de Miguel Laffan, avisa: “Atenção, que estas amêndoas são um vício!”. E Cristina Oliveira, a responsável pelo Enoturismo no resort L’AND Vineyards, sorri como quem conhece o segredo.

Admiramos o seu saber-perder. As garrafas de vinho branco que preparou para nós não saem dos frappés porque o chá e a tisana Wonder L’AND, de rooibos, chá verde, jasmim e laranja, criados pela vietnamita Thuy Tien (dona da loja Mùi Concept, no Porto), são uma opção mais sensata quando nos espera um menu de degustação acompanhado por seis vinhos escolhidos pelo escanção Gonçalo Mendes.

As amêndoas, outra vez elas, são de um castanho-dourado. E, por sorte, por vezes colam-se às duas e três, um descuido do chefe que agradecemos. Hmmm… Gostamos mais do açúcar ou do sal? Ou dos dois juntos? Quem diz que dois é bom e três é demais nunca experimentou misturar estes dois com caril.

Poderíamos ter ficado entre o chá e as amêndoas, e voltar a entrar no carro para fazer os cento e poucos quilómetros de regresso a Lisboa. Mas seria a maior parvoeira do dia, da semana, do mês, do ano, da nossa vida. A sala do restaurante L’AND (by Miguel Laffan) é mesmo ao lado, indica Mário Stromp, general manager do resort (sim, ele descende de Francisco Stromp, fundador do Sporting), onde nos espera “uma viagem gastronómica”.

Azeite e shiso

A frase está escrita na página da internet do resort e é daquelas frases que pretendem resumir o que não se pode resumir. Só se for uma trip, assim mesmo em inglês, e, então, aceita-se a metáfora. Degustar o menu que o ex-menino de Cascais preparou para forçar a entrada na primavera pode ser uma trip das boas – e de olhos abertos, como vamos perceber já, já.

A sala fica na memória de muito boa gente por causa da vista, mas faço como um inspetor do Guia Michelin, um espanhol que a equipa de Miguel Laffan topou logo ao ver que se sentava de costas para a paisagem. [Não é boca à estrela que o chefe perdeu recentemente; aliás, já nem é conversa para se ter porque ele foi o primeiro a dizer que, quando a recebeu, ao fim de 15 anos de trabalho árduo, precisou de espairecer e a cozinha do L’AND ressentiu-se naturalmente] Na nossa memória ficam também os muitos candeeiros que o comensal à minha direita (faço-lhe aqui uma vénia, caro Fernando Caetano) mostrará refletidos na colher de sopa que há de aparecer na mesa para uma interpretação da tailandesa Tom Yun Kung.

Mas, calma!, porque antes dela ainda seremos surpreendidos uma e outra vez. Gostamos do queijinho de ovelha que cabe numa manteigueira e escorrega no pão, e adoramos a folha de shiso que o chefe mergulhou na tacinha de azeite.

Corto um bocadinho de shiso e como-o, não resisto. Embora conste que sabe a cominhos e a limão, não tenho a certeza de reconhecer esses sabores. Só sei que é uma delícia que o saudoso mestre Takashi Yoshitake me apresentou no Aya. “Olha que isso deixa a língua dormente”, diz alguém, e é o segundo aviso do dia que finjo não ouvir.

Cabeça de xara e galanga

Quem disse que a dormência não pode ser uma coisa boa? Não tem nada a ver com a anestesia de um picante, escreva-se, e passa q.b. depressa, acrescente-se. Nada a temer, portanto, e lá foi a folha toda ainda antes de pousar à minha frente uma quadrilogia de entradas que não vem no menu.

Quer começar a salivar a sério? Então imagine comer de seguida um tataki de atum sobre mil-folhas com chutney de manga e cebola-roxa, um rissol de bacalhau de cura amarela frito em pão ralado e tinta de choco, uma ostra do Sado com um céviche de cherne, puré de banana e espuma de ostra (traz ainda um pedacinho de alga que lembra um pequeno coral verde), e, por fim, um croquete de alheira com coulis de bergamota (no seu interior).

Por esta altura já nos serviram um Quinta do Encontro Special Cuvée 2011 (Bairrada), que há de acompanhar também o primeiro prato do menu, um tártaro de lagostim sobre cabeça de xara com coulis de bergamota e caviar no topo. Temos jazz como música de fundo mas dá para ouvir um dos críticos comentar que o sabor da cabeça de xara se sobrepõe demasiado ao lagostim.

Não temos tempo para dizer que sim ou que não porque já estamos a provar o L’AND Rosé 2015 (Alentejo), um vinho biológico monovarietal, Touriga Franca, e põem-nos à frente um prato fundo com ostras cruas, gambas da costa também cruas, noodles de arroz, cogumelos shitake e amêndoas caramelizadas (sim, as da entrada!). Quando vertem suavemente um caldo com caril tailandês, galanga (uma raiz da família do gengibre), folha de lima kaffir e erva-príncipe, fecho os olhos e inalo antes de meter a colher à boca.

Salmonete e pak choi

Para maridar com o prato que se segue, um pregado corado sobre um caril verde de manjericão e mini-legumes, chega à mesa um Quinta de Cidro Sauvignon Blanc 2004 (Douro). Demoro-me a saborear uma florzinha azul-arroxeada e ainda mais a lembrar-me do seu nome. É borragem, pois claro, sabe ligeiramente a sal (também dizem que a pepino, mas não dou por isso) e quando for grande quero uma salada só disto.

Dizem-me as notas que fui tirando que não tivemos um minuto de intervalo até aparecer mais um vinho branco, um Reserva do Comendador 2014 (Alentejo), para namorar (gosto mais…) com o salmonete de Setúbal braseado na salamandra sobre uma açorda de berbigão e espuma de bivalves. Ao lado, uns pedacinhos de lula salteada e caldo de caldeirada. E a ideia da salamandra a perdurar, romântica, no aroma do peixe.

Eis, então, que um Luís Pato Quinta do Ribeirinho 2008 (Bairrada) decide fazer companhia ao peito de pato curado em citrinos (quase um gravlax e meia-hora basta), uma graça só suplantada pela paisagem desenhada pelo chefe – e, aqui, é difícil tirar os olhos do prato. O puré de pak choi (há quem lhe chame acelga chinesa), cozido em vapor, verdíssimo, traz por cima uns cogumelos pantorras (morilles, em francês) e mini pak choi e mini rabanetes. Ao lado, uns laguinhos de vinagrete de amendoim e soja.

Fizemos como Mário Stromp jura que um outro chefe de cozinha lhe ensinou: “Primeiro, pega no garfo e experimenta cada ingrediente; depois, desmancha o prato e cria novos sabores.” E lá se foi a paisagem made by Miguel Laffan.

“É difícil voltar para trás”

Escreva-se, entretanto, que o chefe ainda está a apurar o pato, e que, por isso, por estes dias ele ainda não consta no menu de desgustação. No seu lugar está um pombo e um risotto com foie gras que dizem ser dos céus.

Ao mesmo tempo que o Moscatel Roxo Domingos Soares Franco 1999 (Setúbal) e a primeira sobremesa – um brownie de caramelo e flor de sal, calda de chocolate branco e manjericão com sorbet de yuzu (citrino japonês do tamanho das tangerinas) – ei-lo que chega da cozinha, Miguel Laffan, lui-même, meio-esbaforido. Senta-se a uma das cabeceiras e, a propósito do pato mais pak choi, fala da sua paixão pela Tailândia e da influência clara da cozinha asiática nos seus pratos. “Agora, é a maneira que mais gosto de temperar.”

O seu caminho tem sido nesse sentido, mas até pode, de repente, mudar de rumo. “As pessoas vão crescendo, ficando mais adultas, e querem outras coisas”, começa devagar porque é o estereótipo do chefe que diz ter mais jeito para cozinhar do que para falar. “Não me obrigo, não me forço a mudar, mas sinto a necessidade. Procuro o que quero ser no momento. Provavelmente, daqui a uns anos terei outro estilo…”

No momento, quer usufruir dos produtos asiáticos para aligeirar a cozinha portuguesa. E usar o açúcar e o sal juntos, coisa que, nota, em Portugal, não se sabe fazer. Laffan até pode, de repente, mudar de agulha, já se escreveu, mas há vícios (a palavra é nossa) que ficam. “Quando se experimenta o doce e o salgado, torna-se difícil voltar para trás…”

Por esta altura, já todos dávamos cabo de uma “textura de framboesas, gelado de chocolate branco e mirin” (vinho de arroz de sabor adocicado). Ainda faltavam, a fechar, uns bombons de chocolate, coco e vinho tinto, acompanhados novamente pelo chá e a tisana, desta vez quentes.

Mas foi nas amêndoas caramelizadas do início que pensámos quando saímos do L’AND. Porque foram elas que nos deixaram a língua verdadeiramente dormente de prazer, a querer mais e mais.

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