O faroeste lusitano continua à espera de ser conquistado

Descobrir a região Oeste é como uma exploração arqueológica: escavando um terreno árido e poeirento, à primeira vista sem qualquer interesse, vai-se pouco a pouco desenterrando preciosidades. Talvez por essa razão é que a Mercedes-Benz insistiu junto do Clube Escape Livre, a entidade organizadora dos passeios anuais dos veículos de tracção integral da marca da estrela, para que a 5.ª edição do 4Matic Experience se realizasse naquela zona.  

Num primeiro olhar, o Oeste é desprovido de paisagens arrebatadoras, como no Minho ou em Trás-os-Montes, mas as belezas estão lá – dá trabalho descobri-las, mas a recompensa é gratificante. Além disso, ainda hoje, persiste a ideia de que a região não passa de a grande fornecedora de frutas, verduras e criação à capital, com uma produção de vinho a granel e uma paisagem dominada por construções de arquitectura incaracterística. Mas já não é bem assim: aquilo a que nos habituámos a conhecer tem vindo nos últimos tempos a sofrer transformações significativas. Por exemplo, ainda há poucas décadas, o Oeste caracterizava-se pela produção em grandes quantidades de vinho de baixa qualidade, o qual era maioritariamente vendido a granel. Porém, pouco a pouco, houve produtores que se começaram a aperceber das potencialidades da zona para o desenvolvimento de vinhos de excelência. A criação da Comissão Vitivinícola da Região de Lisboa, em 2008, foi um marco desta revolução e a AdegaMãe é hoje um exemplo desta mudança.

Criada em 2011 pelo grupo Riberalves (mais conhecido pela comercialização do bacalhau), a AdegaMãe dispõe de instalações moderníssimas e automatizadas (a sua manutenção é efectuada por apenas dois técnicos), tendo uma capacidade de produção de 1,5 milhões de litros de vinhos tintos, brancos e rosés. E, apesar da sua tenra idade, já teve alguns dos seus vinhos premiados internacionalmente. Para além da produção de vinhos, o enoturismo não foi descurado: além de aberta a visitas e dispor de uma loja, a AdegaMãe organiza cursos de vinhos, passeios pelas vinhas, almoços, jantares, baptizados, casamentos e outros eventos.

O radar de Wellington

Na primeira manhã, pouco depois da saída do hotel, as potencialidades das viaturas são pela primeira vez postas à prova nos trilhos que sobem até ao topo da serra do Socorro. À primeira vista, os 395m de altura não são nada de impressionante, mas a vista a 360º do alto contradiz essa ideia: como boa visibilidade, avista-se o mar, as Berlengas, Peniche, Torres Vedras, as serras de Montejunto e de Sintra e as cúpulas do Convento de Mafra. Lá em cima, existe uma pequena ermida de construção gótico-manuelina. O local também acolhe a estação de comunicação e observação das Linhas de Torres Vedras do quartel-general do duque de Wellington, que comandou as tropas anglo-portuguesas durante a terceira invasão francesa.

A eficiência das comunicações e observação das tropas inimigas é meio caminho andado para o sucesso – veja-se o caso da utilização do radar pelos ingleses na II Guerra Mundial, para detectar e prevenir as incursões da aviação alemã (ironicamente, o primeiro radar foi construído em 1904, pelo alemão Christian Hülsmeyer). Pois bem, Wellington criou uma espécie de radar/telégrafo avant la lettre, em 1809, para suster as tropas francesas mais numerosas e bem equipadas do general Massena e impedir que elas chegassem a Lisboa: as Linhas de Torres.

As Linhas de Torres são um conjunto de 153 fortificações dispostas em três linhas: a primeira parte de Torres Vedras, passa pelo Sobral de Monte Agraço e termina em Alhandra; a segunda abrange Mafra, Montachique e Bucelas; a terceira engloba a enseada de S. Julião da Barra e serviria, em caso de derrota, para cobrir a retirada por mar das tropas anglo-portuguesas. Postos de vigia instalados nos cumes das elevações permitiam observar as deslocações das forças francesas. Por meio de um código secreto, inspirado nas comunicações entre navios, todos os movimentos eram detectados e transmitidos, permitindo o rápido reagrupamento das tropas para fazer face às investidas inimigas. Assim, com menos meios humanos e materiais, conseguiu-se fazer uma oposição eficiente aos avanços dos franceses. Por isso, em 1810, ao deparar-se com este obstáculo, Massena decidiu retirar-se. Hoje, existe a Rota Histórica da Linhas de Torres, uma iniciativa intermunicipal com seis percursos temáticos, possíveis de fazer por caminhada ou, para os mais comodistas, num veículo todo-o-terreno.

O piquenique dos javalis

Descendo da serra do Socorro, entramos na Tapada de Mafra, criada em 1747, no reinado de D. João V na sequência da construção do Palácio Nacional, que lhe é contíguo. Conhecida então como Tapada Real de Mafra, a sua criação teve como objectivo a existência de uma zona de lazer vocacionada para a caça e recreação da família real e da nobreza. Hoje, a zona é ainda usada para a caça, embora de forma limitada (para conter a fauna, em especial os javalis, em quantidades sustentáveis), para turismo rural e lazer.

Por entre veredas verdejantes, com as copas das árvores quase a tapar o sol, podemos ver à beira da estrada numerosas famílias de javalis (pai, mãe e filhotes) em tranquilos piqueniques, mirando com algum desdém, as viaturas que passam e rasgam o silêncio com o ronco dos seus motores. 

A outra fauna existente na Tapada de Mafra é bem mais recatada, sendo difícil avistar: gamos, veados, lobos, raposas, doninhas ou ginetas. Mais fácil é observar o voo das aves de rapina (águias, açores, bufos) bem como gaios e rouxinóis. Já as perdizes, petisco apreciado pelos predadores (humanos incluídos), escondem-se dos olhares cobiçosos.

Os piqueniques dos javalis abrem-nos o apetite para o almoço nas instalações da Tapada, antes da visita obrigatória ao Palácio-Convento.

Faraó português

O Palácio Nacional de Mafra é sobejamente conhecido e visitado. Hoje são três as entidades que dividem a sua gestão: o Convento é ainda hoje ocupado pelo Exército, o Palácio e a Basílica estão sob a alçada da Direcção-Geral do Património Cultural, cabendo à autarquia local a utilização e gestão de uma parte das instalações.

Se os faraós construíram as pirâmides, o rei D. João V, para pagar uma promessa, mandou, qual faraó, edificar esta imponente e mastodôntica obra, onde, à grande e à portuguesa, enterrou grande parte do ouro proveniente do Brasil. Tendo a primeira pedra sido lançada em 1717 e concebido inicialmente como um pequeno convento para 13 frades, o projecto foi alvo de sucessivos alargamentos durante cerca de duas décadas até se constituir no maior exemplo de arquitectura barroca em solo português.

São famosos os carrilhões, bem como os concertos de órgão que se realizam com regularidade. Do Palácio, é de referir as instalações dos frades (incluindo um hospital) e os aposentos reais, com curiosidades como uma sala de jogos, que, além de bilhares incluía uma espécie de flippers.

Porém, para o visitante desprevenido, o que mais impressiona é a biblioteca, com um valioso acervo de cerca de 36.000 volumes, incluindo livros proibidos na época. Em forma de cruz, com 85m de comprimento, 9,5m de largura e 13m de altura, é uma visão esmagadora, de cortar a respiração. Uma curiosidade: a biblioteca tem residentes permanentes – colónias de morcegos que se encarregam de comer insectos, como as traças, contribuindo para a preservação dos livros.

Gelo da serra de Montejunto

No último dia do passeio, a subida por trilhos íngremes, ao cume da serra de Montejunto, que, com 666m de altura, é o ponto mais alto da Estremadura, tem como recompensa uma ampla vista do mar e da região circundante. Um pouco abaixo do topo, situam-se as instalações da antiga fábrica de neve da serra de Montejunto, que, de 1741 a 1885, forneceu gelo à casa real, às famílias mais abastadas e às confeitarias de Lisboa. 

A produção de gelo, um trabalho duro, tinha algumas similaridades com o actual fabrico do sal: no Inverno, enchiam-se tabuleiros de 12cm de profundidade com água que gelava durante a noite. Esse gelo era removido antes do nascer do sol e guardado em poços, tapados com palha. Nos meses de Verão, partiam-se blocos, que se envolviam em palha e serapilheira, transportados primeiro encosta abaixo por burros, depois por carroças e por fim por barcaças pelo rio Tejo até ao Terreiro do Paço, sendo o gelo armazenado no local onde é hoje o café Martinho da Arcada. Esta indústria persistiu até à invenção do frigorífico.

É com pedaços como este da História da região saloia que voltamos a enfrentar os trilhos para enfim podermos afirmar que desta vez não conquistámos o Faroeste. Mas demo-nos por conquistados.

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