Empresária vinícola converteu a venda de vinho a granel na Casa Ermelinda Freitas. Passou de 60 para 440 hectares, de um milhão para 12 milhões de litros por ano, 17 milhões de euros. Quatro gerações de mulheres. A 5.ª é a filha Joana
De telemóvel na mão, Leonor Freitas tem um problema urgente para resolver: avariou uma máquina e há vinho para entregar. Tem ainda de garantir que as viagens de avião serão compradas para uma ida ao Porto, no dia seguinte. Ao mesmo tempo que responde às perguntas do jornalista, a entrevista não acaba sem uma visita às instalações da adega, onde cumprimenta pelo nome todos os funcionários com quem se cruza.
A Leonor é a 4.ª geração de mulheres à frente da Casa Ermelinda Freitas. Seguir-se-á uma Joana, ???????a sua filha, outra mulher?
Sim, já é um futuro presente. Não há dúvida que a próxima gestão será outra mulher, embora eu tenha uma filha e um filho. Mas o meu filho está na parte informática, ela é que tirou Gestão e começou a assumir muita coisa. Portanto, diria que estou na transição para a 5.ª geração de mulheres. A 6.ª ? Vamos ver porque ainda não tenho netos.
Os filhos tiraram o curso que quiseram ao contrário da Leonor, que não a queriam no campo.
Queriam uma vida melhor para mim. Em relação aos meus filhos, não tive qualquer interferência, até porque nem sequer me passava pela cabeça que esta casa viesse a ser o que é hoje. Mas mesmo sabendo, a opção seria sempre deles. O João sempre gostou de fazer programação. A Joana desde muito pequenina que gostava do campo.
Eles cresceram na herdade?
Vivemos em Setúbal, mas sempre passaram aqui os fins de semana e as férias, havia um contacto muito próximo. A Joana gostava de andar com o meu pai nas vinhas. O João, embora seja mais velho, não queria ir. Era um teórico, sabia tudo sobre o milho, o tomate, mas dizia: “Ah, sujo as mãos, os pés, e não gosto de ir, avô.” Queria ler, mais tarde era o computador, mais caseiro. A Joana queria estar fora de casa. O meu pai chegava a dizer: “Isto está ao contrário. O rapaz é que devia andar comigo.” Quando o meu filho nasceu, o meu pai ficou encantado, porque achava que um rapaz é que podia dar continuidade a isto. Mas desde que eles eram muito pequenos percebeu que não seria assim, ele a gostar muito da escola e dos livros, ela menos estudiosa e a começar logo a dizer que queria ir para enóloga.
Mas acabou por seguir Gestão.
Até chegámos a ir à universidade em Vila Real, onde havia o curso de Enologia, mas antes dos exames do 12.º, disse-me: “Mudei de ideias. Resolvi ir para Gestão porque a gestão tem de ficar na família. Estive a pensar que enólogo temos, técnico de vinhas temos. A gestão é que tem de ficar na família.” Tal e qual. Ela tinha 16 anos e eu disse: “Eh pá, esta miúda pensa nas coisas.” Tirou Gestão e há pouco tempo fez uma pós-graduação em enologia. Fez um pequeno estágio numa distribuidora e quis vir logo para cá. Eu até queria que ela fosse trabalhar para outro lado, para ganhar experiência, mas ela respondeu: “Preparei a minha vida para ir para aí!” Hoje é a responsável pelos mercados externos. Anda sempre de mala feita.
E hoje o mundo é global.
Exatamente. E era muito importante que ela não ficasse aqui fechada, com a mãe. Sem querer, bloqueamos os filhos, tenho consciência disso. Somos as duas que fazemos a exportação. Eu faço uns países, ela faz outros, faz os mais difíceis: a China, o Japão… .
São os mais difíceis, porquê?
Porque tem de se andar muito tempo fora, eles têm uma cultura muito diferente da nossa e tem de se saber inglês, que eu sei mal. Eu acabo por fazer os mercados de língua portuguesa e espanhola, fazia a África – agora Angola está parada -, faço Brasil, México…
Como é que têm tantas mulheres à frente do negócio do vinho?
Eu não tenho irmãos e isto das mulheres é um mero acaso. A minha bisavó [Deonilde] – falo da bisavó porque foi aí que encontrei as partilhas das vinhas – que eu não conheci, ficou viúva muito cedo e conseguiu aguentar uma casa agrícola. Depois, a minha avó [Germana] ficou viúva com 38 anos. O meu avô foi atingido pelo grande surto de tuberculose que houve na altura. Morreu ele e uma filha, com 16 anos.
Não foi nada fácil.
Exatamente. E ela teve força para aguentar a casa e os filhos pequenos, para os criar. Era uma lutadora! E essa, sim, eu conheci. Tenho grandes referências dela e, se calhar, influenciou-me muito para hoje estar aqui. Porque, de facto, os meus pais queriam que eu estudasse e que saísse da aldeia. Ela não casou mais, não refez a sua vida, dedicou-se inteiramente à família e ao trabalho. Depois, veio o meu pai e é o homem da família que está mais tempo à frente da empresa, mas também morreu novo, com 59 anos.
É nessa altura que volta a casa?
Sim, tinha 38 anos. A minha mãe, que é a D. Ermelinda, não tinha condições para ficar sozinha à frente da Casa. Sendo eu filha única, só tinha duas opções: ou regressava ou vendíamos. E não vendi por amor. Arrepiava-me toda quando pensava em vender. Trabalhava em Setúbal, na Administração Regional de Saúde, gostava do que fazia e tinha a vida organizada, mas passaram-me de tal maneira o amor a isto, sem eu me aperceber, que não consegui vender. Por isso é que não vale a pena influenciar as pessoas, eu vim pela minha vivência. Eles tinham um tal amor às vinhas, a tudo o que era campo, trabalhavam loucamente. E eu assisti a tudo.
E o seu marido?
O meu marido trabalhou na Portucel até se reformar, agora também cá está, estamos todos.
Mas as mulheres é que são as gestoras. Resistem melhor à dureza do campo?
Não sei se, inconscientemente, tenhamos passado a mensagem umas às outras. Não acredito que esteja nos genes, até porque foi um mero acaso. Coitados dos homens, que morreram muito cedo, não é? Agora, somos mulheres fortes, que conseguiram levar a Casa para a frente. Não me esqueço das referências da minha avó, da minha mãe, mas a minha avó é uma referência muito forte, e do que eles trabalharam.
É a Leonor quem manda em casa?
Mando, também tive a sorte de ter um homem, que eu respeito muito, que deixa mandar. A minha mãe dizia: “Ai filha, só podias ter casado com este homem.” Se calhar é verdade, porque somos muito diferentes. O meu marido gosta de ser discreto, estar sossegado, gosta de ajudar, é muito boa pessoa. Gosta que estejamos bem e que alguém resolva as coisas por ele. E, portanto, mandei sempre muito, sobretudo quando aconteceu a morte do meu pai. Disse: “Vamos morar para Fernando Pó [em Palmela, Setúbal, onde fica a Casa Ermelinda Freitas], fazer isto e aquilo”, e ele limitou-se a fazer. Foi um colaborador enorme.
Ao lado de uma grande mulher há sempre um grande homem.
E isso é muito importante. Só consegui fazer o que fiz pelo grande equilíbrio familiar e tenho de fazer uma grande justiça ao meu marido, vim para cá a saber pouco e era um risco. Para ser o que a Casa é hoje, em primeiro lugar está o equilíbrio familiar e depois a equipa que acabei por reunir . Destaco o papel do Jaime Quendera, que além de enólogo é um amigo.
Mantém essa equipa há muito tempo ou há rotatividade?
Não. A equipa tem-se alargado, mas as bases mantêm-se.
Sentiu-se sempre apoiada?
Um apoio incondicional. Muitas vezes, chegava a casa e dizia: “Hoje fiz asneira!” Fazia negócios e dizia: “Deus queira que não tenha feito asneira.” E havia uma frase do meu marido: “Eu não era capaz de fazer melhor!” Não te preocupes!” Portanto, está a ver isto.
Os filhos tinham que idade?
O João 10 e a Joana 4.
Foi uma grande mudança para eles.
Sim. Vivemos aqui, com a minha mãe, o que acabou por ser muito desgastante, trabalhar e viver no mesmo local. Jantava e vinha para aqui, trabalhar. E para eles também era difícil por causa das faculdades, foi aí que resolvi voltar novamente para Setúbal. Às vezes, olho para a casa e penso: “Tenho saudades! Apetecia-me vir para cá outra vez”. Não mora lá ninguém.
Esse grande amor pela agricultura não se revelou cedo. Porque é que não veio logo?
Porque fiz um curso completamente diferente. Sou assistente social e não fazia tenção de vir. E já pensava que talvez, se os meus filhos gostassem, pudesse haver um regresso, mas não para eu trabalhar. Isto tinha uma dimensão muito mais pequena, estavam cá os meus pais e eu tinha sido preparada para estar no meio urbano. Repare que fui das primeiras pessoas da família a tirar um curso superior. A família queria que eu pertencesse aos saberes, porque quem estava no campo não era dos saberes.
É contra essa visão que tem lutado?
Tenho e hei-de lutar enquanto puder. Deve vir para o campo quem gosta, o trabalho do campo não tem de ser desprestigiante, pelo contrário, tem de se saber muito para estar aqui. Sou uma rural, mas uma rural que saiu. Foi muito importante, fez toda a diferença, como fez tirar um curso diferente.
Porque é que escolheu o curso de assistente social?
Quando acabei o 5.º ano, o antigo 5.º ano, quis ir para regente agrícola, que era o curso ligado ao campo que havia. O meu pai disse-me: “Filha, isso não é curso para menina. Isto não é vida para ti. Nós queremos uma vida melhor para ti, continua a estudar.” E depois sempre fui muito comunicativa e gostei de ajudar. Uma professora um dia disse-me: “Ó Leonor, para o que é que anda a pensar ir? Acho que há uma coisa que é para si, serviço social, assistente social.” Respondi: “Não sei.” E ela: “Vou pô-la em contacto com uma amiga que lhe explica o que é.”
Estudou na Escola Superior de Serviço Social?
Sim, no Mitelo, hoje já não existe. Gostei do curso, fui a segunda melhor aluna. Quando acabei fiquei a trabalhar onde fiz o estágio, na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, mas depois transitei para Setúbal. O meu marido trabalhava em Setúbal e fomos viver para lá quando me casei. E vou para o curso assim, por influência de uma conversa, olhe! E, de facto, não pensava em vir para cá, digo-lhe já, trabalhei mais de 20 anos como assistente social. Não é brincadeira.
E, de repente, fez-se luz.
Só me apercebo do que tinha cá dentro, dos conteúdos afetivos, dos laços, quando venho para cá.
A experiência na função pública trouxe-lhe alguma mais-valia?
Traz sempre. Estava na educação para a saúde e gostava do que fazia. Coordenei concelhos, depois o distrito de Setúbal, várias equipas de educação para a saúde. E sempre fui muito dinâmica. O comunicar, o ter de dar respostas, o ter situações difíceis para resolver, experiências que foram muito importantes para aqui.
Até porque quem trabalha na área social lida com casos complicados .
Exatamente. E, sobretudo, porque apanhei uma sociedade com muitos problemas sociais, em fases muito difíceis, o desemprego, tudo isso. Tive de aprender a trabalhar em equipa, a desbloquear situações, a lutar por aqueles que não tinham voz, que eram pessoas que eu ajudava e para quem eu trabalhava. Tudo me ajudou. Ai, não. Até a avaliar as coisas mais negativas que pudesse haver, até para não as repetir.
E fez a Casa Ermelinda Freitas e transformou-a num sucesso.
É verdade , mas porque tenho uma boa equipa. Ai de mim se o enólogo Jaime Quendera não fizesse bem o vinho, se não tivesse boas uvas e o nosso consultor – o engenheiro António Ribeiro que também gosta muito da vinha – a engenheira Ana Silveira, que é espetacular, e outros. Sem eles não seria possível. E depois o consumidor, que percebeu a minha mensagem, que acarinhou os vinhos, que gosta, que bebe, que percebeu que eu queria fazer a melhor relação qualidade-preço.
O facto de ter estudado e ter saído da quinta foi importante?
Importantíssimo. Só para lhe dar um exemplo, a minha avó não sabia ler nem escrever e tinha um irmão que era médico, isto diz tudo. A minha mãe e o meu pai tinham a 4.ª classe. Se tivesse ficado fechada, de certeza que não tinha os mesmos horizontes.
O facto de ser mulher ajudou?
Acho que sim. Mas eu acho que não há trabalhos para mulheres, nem para homens. Há as pessoas certas nos sítios certos. Eu tive de aprender a lutar muito cedo. Até porque saí daqui com 10 anos. Isto era muito longe de tudo, não tínhamos luz elétrica, estrada de alcatrão. Sou do tempo do candeeiro, do Petromax e, mais tarde, veio o gerador. Os meus pais tinham um gerador porque a adega precisava de equipamentos que tinham de ter energia. Tive de sair, andei em colégios, de freiras, em lares. Tive de aprender sozinha o que estava certo e o que estava errado, a sobreviver. Os meus pais fizeram-me a matrícula no 1.º ano e foi tudo.
Não iam ver as notas?
Não, só perguntavam se passava o ano, porque se não passasse vinha embora. Era a ameaça e eu não queria vir. E, no fim, é onde venho acabar a minha vida.
As voltas da vida.
Pois. Eu tinha de me organizar até em relação ao dinheiro, tinha apenas o suficiente, casa, alimentação, mas tinha três mudas de roupa, dois pares de sapatos.
Disse uma vez que queria criar um mundo rural moderno. Isso é o quê?
Já nem me lembrava que tinha dito isso. Por sermos rurais não temos de ter a imagem de uma pessoa que só veste determinadas roupas, que não sabe ou sabe muito pouco, que não contacta com os outros mundos. Eu quero ser rural aqui, rural, rural, rural, e com as minhas origens! Quero que seja uma empresa dinâmica e moderna, voltada para o exterior, para receber os turistas, para estar em interação com as outras empresas da região, fazer parcerias, um espaço aberto à comunidade.
E a qualificação?
A qualificação é muito importante, valorizar os jovens que vêm para aqui trabalhar. Dizer-lhes: “Isto é tão digno como vocês irem para uma fábrica, até estão melhor porque estão mais próximos. Dou prioridade a toda a gente que é daqui. A pessoa que mora mais longe vive em Almada, é daqui mas depois foi viver para lá.
Não há desemprego nesta zona.
Não, só temporariamente é que há. Porque nas vinhas, às vezes, há períodos sazonais. Mas é pouco, sim.
E paga bem aos funcionários?
Não sei se pago bem. Pago aquilo que, neste momento, é possível para estar na concorrência. Não posso ser utópica, tenho de acompanhar os preços que os meus colegas praticam, para ser competitiva. Mas gosto de pagar bem e, sempre que posso, gosto de compensar os meus funcionários.
No final do ano?
Sim. Ou então a meio. E temos feito grandes investimentos e os mercados não estão fáceis, o mundo está em convulsão, como Angola para onde vendíamos muito e que parámos, não pagam. Andamos sempre na luta para vender e investimos muito.
Há uma grande rotatividade de trabalhadores?
Não e está sempre a aumentar a equipa, tenho muita gente jovem, sobretudo na adega. No campo, há pessoas de mais idade. E já tenho cá um neto de umas pessoas que trabalharam para os meus pais. É muito giro! É o encarregado da linha do engarrafamento.
Os seus pais vendiam vinho a granel, como é que se dá o salto para as marcas e com sucesso?
Olhe, tem que ver com as gerações que trabalharam antes de mim. Se não tivesse nada, também não o conseguia. Depois, todo o apoio, da família; depois, a equipa que trabalha comigo, que eu acho que é fundamental. E depois, de facto, as pessoas, termos ido ao encontro do gosto dos consumidores. Estamos numa grande região, uma região de grande qualidade. E não fizemos mais do que foi aproveitar as potencialidades desta região.
Também soube utilizar muito bem o impacto da televisão.
Foi muito natural. Não temos ninguém para fazer marketing, sou eu que faço tudo e acho que o vinho tem de ter um rosto. Uma garrafa de vinho é muito mais do que uma garrafa de vinho, ela tem afeto, tem longevidade, tem história. Por isso, decidi criar marca. Escolhi Terras do Pó porque a localidade onde estamos chama-se Fernando Pó; Ermelinda, porque era o nome da minha mãe; o Dom Campos, porque é o apelido do meu marido. E Leo d”Honor é o meu nome disfarçado.
Rótulos com história.
Sim, e, de início, tudo passou por mim e por essa equipa, que era muito pequenina, mas foi tudo sempre muito sentido, muito afetivo. Usámos as cápsulas às riscas, para nos conhecerem. No início, achavam que era uma maluquice. Hoje, toda a gente conhece os nossos vinhos pela risca. E, depois, de facto, comecei a aparecer, a comunicar, a não ter medo de assumir e a dar o rosto. Repare, se não sabia, tinha de ir ter com quem sabia, tinha de perguntar, de dizer que não sabia. Isto nasce assim. Tem havido muito trabalho e depois acho sempre que há uma estrelinha da sorte a ajudar-nos.
Como foi a entrada num mundo de homens, ainda por cima “inexperiente”?
Não posso dizer que foi fácil, não carreguei no botão e entrei neste mundo. Agora, a primeira mudança foi ter confiança em mim própria, foi uma grande conquista dizer para mim própria: “Não é por ser mulher – ainda hoje faço isso – que não vais levar o que é da família para a frente.” Deu-me muito trabalho.
Mais trabalho do que se fosse um homem?
Muito mais. No início, eu não tinha margem para errar. Tinha os olhos todos postos em mim. Muitas das vezes, estava em reuniões, e era a única, e quem coordenava dizia: “Minha senhora e meus senho-res …” Quase que me sentava pelo banco adentro. Tive um rigor em tudo o que fazia, para não me apanharem. Agora já posso errar um bocadinho, mas naquela altura não podia, ninguém acreditava que ia ter sucesso. Era aquela que vinha da cidade. A minha própria mãe sofreu muito com medo de eu não saber, tinha muita gente a dizer–lhe “Veja bem, agora a sua filha vem para aqui. Olhe o dinheiro que ela está a gastar. Olha, agora veio plantar Touriga, quando aqui só se dá Castelão e Fernão Pires!” Só tinha duas castas.
E agora tem quantas?
Vinte e nove castas. A minha mãe, coitada, dizia-me: “Filha, os teus primos têm dinheiro e tu não tens”, mas cá está, não precisava de dinheiro. E tudo isto me dá, de facto, uma exigência que, se fosse um homem, não precisava. Agora, também faz muita diferença, deixe-me dizer-lhe. Eu não sou feminista, nada disso. Agora, acho que os homens têm outras características, mas nós, de facto, temos uma intuição e outra sensibilidade, nota-se. Acho que eu aproveitei bem tudo isso e soube impor-me, para que os homens me respeitem como eu os respeito.
Sentiu-se discriminada?
Senti diferenças e lutei para que elas fossem ultrapassadas, mas fingi sempre que não percebi e tentei ultrapassar essas situações.
O objetivo é ter um vinho com boa relação qualidade-preço. Não é uma produtora elitista.
Não, não sou elitista. Tenho bons vinhos, tenho o Leo d”Honor, o nosso topo, e tenho ambições de lá chegar, mas quem está habituado a viver de vinho a granel – porque ainda vendi vinho a granel – está habituado a ganhar muito pouco. E quando comecei a fazer marcas disse: “Vamos fazer bons vinhos sem entrarmos em loucuras de preços. Quero é que haja cada vez mais pessoas a conhecerem e a beberem os vinhos, quero crescer.” Ainda hoje, quero fazer os melhores vinhos a um bom preço, porque eu quero viver disto.
Quando percebeu que isso era possível?
Quando vim para cá, continuei a trabalhar porque sentia uma grande instabilidade económica, não sabia o que é que isto ia dar. Vim em 1991 e continuei na função pública até 2004. O meu marido nunca deixou de trabalhar e, durante muitos anos, vivíamos do ordenado do meu marido. Tudo o que ganhava investia aqui e até algum dinheiro que tinha pu-lo cá. Porque queria muito que isto crescesse. Eu dizia: “Vamos fazer bom e depois vamos ver. A gente não precisa de ganhar muito, precisamos é de qualidade.”
Como é que os outros produtores reagiram a isso?
Acharam que era uma brincadeira. “Ah, é até ela se cansar!” Agora veem que é a sério e que sou uma concorrente.
E a primeira marca que fez ganhou logo um prémio em Bordéus.
Foi com o Terras do Pó que ganhámos logo uma medalha de bronze, em 1998. Em 1999, ganhámos uma medalha de ouro. Foi um acontecimento. Até fizemos um jantar, fomos festejar. Hoje temos mais de 700 prémios.
Um deles o de melhor vinho do mundo.
Distinguidos em 2008, com o Syrah. Mas agora também temos muitos prémios importantes. Com o Moscatel Superior Roxo ficámos nos 10 melhores do mundo.
O que é que os prémios trazem?
Trazem vendas e, sobretudo, ajudam-nos muito a sermos conhecidos no estrangeiro.
Onde é que vendem mais lá fora?
Olhe, nós estamos muito divididos. Vendemos muito na Europa, em países como a Finlândia, a Noruega, a Polónia. E depois temos o Brasil, a Colômbia, o Japão, a China. E também em Portugal, num ranking de empresas familiares estamos em 3.º lugar das melhores de Portugal.
E agora, quais são os projetos?
Tenho muitos. Estamos a apostar no enoturismo, sem dormidas, em visitas e provas. Tenho estado sempre a fazer ampliação na adega, sempre em obras, que as pessoas podem conhecer. E depois, em cima, que tem uma vista para a vinha, fazemos a prova de vinhos, acabando na loja onde podem comprar. Também podem fazer uma refeição se marcarem. Queremos trazer as crianças, os jovens, e mostrar-lhes a vinha.
Continua a morar num apartamento em Setúbal?
Não, comprei uma casa maior há três anos. Mas morei naquele apartamento desde sempre e tencionava ficar. Gosto muito do apartamento e ainda o tenho, mas surgiu uma coisa melhor e convenceram-me a comprar. Fica ao pé do meu enólogo, que me disse: “Está lá perto uma casa que é o seu rosto, ó Leonor! É uma oportunidade.” Hoje estou muito satisfeita, mas quando me mudei estava assustada, porque não era a minha ideia.
Agora que é dona de um negócio de 17 milhões por ano, não entra numa loja e paga o artigo sem saber primeiro o preço?
Ai, não! Não, não consigo. E mesmo assim, às vezes, compro coisas mais caras e culpabilizo-me por isso. Penso logo que é estragar dinheiro. Utilizo esta frase muitas vezes: “Não fui educada a estragar dinheiro! E, agora, fui comprar esta mala tão cara?” É que gosto muito de malas.
Então, para que é que serve o dinheiro?
Serve para investir, para criar coisas e para estarmos bem e ter uma vida confortável, porque eu tenho o suficiente, a minha família tem o suficiente. Mas não é para estragar.
Conta que uma coisa que lhe trouxe o negócio do vinho foi falta de tempo e de dinheiro. Mantém-se?
Mantém-se, tal e qual. Porque tudo aquilo que está feito, tudo o que estão a ver, foi feito já na minha época. Havia só um pequeno espaço que foi transformado em museu de família, chamo-lhe espaço de afetos e memória, o resto cresceu comigo. Estou permanentemente a investir nas vinhas e na adega. Tinha 60 hectares, agora são 440 e brevemente serão mais. Produzo 12 milhões de litros de vinho por ano e produzia um milhão. O ano passado faturámos cerca de 17 milhões de euros.
Mas já pode dar-se a alguns luxos.
Sou uma pessoa que tenho tudo o que preciso. De facto, nunca tive ambições nesse sentido. Quando vim para aqui, pensei : “Tenho tudo o que preciso! Não preciso do dinheiro disto. O que é que eu vou fazer ao dinheiro!?” Tenho investido.
Não distribui pelos filhos?
Os meus filhos também não têm muito dinheiro. Dava-lhes uma mesada em pequenos, dizia-lhes para pedirem se precisassem, não foi preciso, nunca gastavam. Hoje têm um ordenado, mas não é muito grande. Tiveram uma boa vida, mas sempre sem exageros, sempre perceberam que há quem não tenha nada e que aquilo que temos hoje podemos amanhã não ter. Temos de ter a humildade e agradecer o que nos aconteceu. Não escolhemos a família onde nascemos, eu tive a sorte de nascer nesta família, muito simples e muito honesta, em que me passaram grandes valores, pessoas com grande amor ao próximo. Os meus pais trabalhavam ao lado dos empregados, mas eram do género: “Temos de agradecer às pessoas. Estão a ajudar-nos.”
Já alguma vez aconteceu deixar de ter o dinheiro suficiente?
Não, mas isto não é fácil. Aparecem muitas dificuldades. Os momentos mais difíceis tento sempre ultrapassá-los.
Como é ser comendadora da Ordem de Mérito Empresarial, Classe de Mérito Agricultura?
Uma surpresa. Telefonaram e eu nem percebi o que se estava a passar. Só pensava: “Meu Deus! Como é que isto está a acontecer? Se a minha família conseguisse ver o que está a acontecer, ficariam muito orgulhosos.”
O que diria o seu pai?
Exato. E a minha avó? E todos? E quando recebi a medalha, disse ao presidente Cavaco Silva: “Quero agradecer-lhe em nome do meio rural, porque o senhor olhou para o meio rural. E esta minha comenda é partilhada com esse mundo. É das coisas da minha vida… tem-me acontecido muita coisa que eu não esperava, que acho que não fiz nada para isso.
Pensa trabalhar até que idade?
Não sei, não tenho limite. É até me sentir bem e que as pessoas que trabalham comigo vejam que ainda sou útil. É uma das coisas que eu já vou dizendo. Quando acharem… Eu não quero é ser um bloqueio a esta casa, isso é que não!