‘For the record’

No foi nem na primeira, nem na segunda vez que visitei Londres. Tenho quase certeza de que foi na terceira –mas pode ter sido na quarta. Era dia 31 de dezembro, e eu estava na loja da Rough Trade, um selo que ainda inspira respeito mesmo nesses tempos em que o universo da msica to pulverizado. Em 1986, ento, quando eu pus pela primeira vez meus ps na sua loja principal, na Talbot Road, aquilo era uma espcie de templo sagrado.

No tenho certeza quanto tempo passei l, mas vamos dizer que foram horas, para um clculo mais aproximado. Ou ainda, foi o tempo suficiente para um viajante com oramento baixo sair de l com cerca de 40 discos de vinil. Sim, os CDs j eram uma realidade em 86, mas eu sempre demorei um pouco para, digamos, “abraar novidades”.

Perambulando pelas prateleiras, deparei-me com um cara que parecia ter minha idade. Certamente tnhamos o mesmo interesse musical, pois trocvamos olhares disfarados, um conferindo o que o outro estava comprando –e me surpreendi com muitas coincidncias.

Outra coisa que me chamou a ateno era que ele parecia ser indiano. Como estava em Londres, voltando da minha primeira viagem ndia, de onde sa fascinado, no pude deixar de reparar nesse detalhe.

Absorto em minhas escolhas –quem disse que eu tinha dinheiro para levar tudo que queria?–, perdi-o de vista. Sa da Rough Trade com as ruas j escuras, mas como era inverno, deve ter sido por volta das 16h. As trs sacolas provaram ser bem pesadas, mesmo no curto trajeto at o metr, e, quando me sentei esbaforido no vago, reparei que o “indiano” estava ao meu lado. Havia entrado provavelmente em uma estao anterior.

Reconhecendo-me, perguntou: “Voc no conseguiu vender seus discos?”. Levei um tempo para entender. Ele havia ficado to impressionado com a quantidade que eu levava que no imaginou que eu tivesse comprado tudo –mas, sim, que estava vendendo coisas da minha coleo! Expliquei que de onde eu vinha no era fcil achar aqueles discos, e ele na hora achou que eu era indiano! Dei uma risada e contei que era brasileiro.

Foi assim que conheci um dos meus melhores amigos at hoje –um americano de me indiana. E a costura dessa amizade sempre foi a msica, as lojas de discos e o clima musical de Londres.

De l para c, claro, esse cenrio mudou bastante. Acompanhei, com tristeza, primeiro o fechamento das grandes cadeias: Tower Records, de Picadilly, Virgin, de Tottenham, a gigantesca HMV, de Oxford (s sobrou uma pequena). Depois, foram-se as lojas independentes do Soho, South Kensington, Camden Town. Minha peregrinao musical, obrigatria em cada escala londrina, foi ficando cada vez mais curta. At porque fui descobrindo outras maneiras de ouvir e consumir msica.

Da ltima vez em que estive l, em maio deste ano, s consegui visitar a Sounds of the Universe e a Sister Ray (que mudou-se para um espao bem menor). Pensei em passar pela Rough Trade, mas no deu tempo. Se tivesse ido, talvez pudesse surpreender meu velho conhecido com uma nova descoberta –por exemplo, o funk reinventado de um londrino chamado Dornik…

Mas eu chegaria atrasado. Meu “amigo indiano” provavelmente j “baixou” esse lbum da internet. E nossos templos musicais agora so meros registros de nostalgia de uma Londres que j no existe mais –e que no mximo nos permite brincar com o duplo sentido da expresso em ingls do ttulo de hoje.

“For the record” –”para ficar na memria” ou “em nome do disco”!

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