Aqui é Bela Vista, meu!!!

Dia desses tentaram nos enfiar goela abaixo o título de hipster, em um texto tão insustentável como a quantidade de aspas que explicavam a diferença entre hipster e hype que teriam se assentado nesse bairro paulistano.

Mas na nossa Bela Vista (e na de todos os nossos avós) não cabem etiquetas gourmetizadoras como as que se costumam imprimir sobre bairros que se vestem com roupagem moderninha e ganham matérias que levam tendência, renascimento ou point no título.

A Bela Vista não é hype, não é cool, não é trend, não é hipster.

“Hipster é o meuz óvo”, gritara em caixa alta uma organização a favor do trabalho honesto dos palestinos que mal falam português e que escrevem da direita para a esquerda, como o autor descreve no seu texto definitivo sobre modernidades.

Nem ele, que escreve tão direitinho, da esquerda para direita, conseguiu ser entendido.

Os refugiados palestinos do texto mal falam português, mas tão pouco têm tempo para aspas ou etiquetas. No lugar de onde eles vêm, existem discussões mais urgentes.

Créditos: Dennis Fidalgo/Flickr-Creative Commons

Detalhe de uma das casas da Vila Itororó, na Bela Vista, em São Paulo

A Bela Vista é tudo aquilo que ela quiser ser. E ninguém se importa se você é nordestino, italiano, palestino ou se vem dus lado de cá ou de lá da Faixa de Gaza.

Separatista mesmo é a matéria que, a despeito da boa pauta que os “amigos do rolê” lhe sopraram no ouvido, deixa de escrever sobre o bairro e se encanta com o “estilo rústico estilizado” (sic) dos hipsters que o especialista consultado pelo autor do texto se propôs a explicar, em uma profunda análise sobre a diferença entre os que ficam “na dele” e os que adoram “clipes que bombam”.

Essa história de aspas contamina mesmo, hein, xará?

O bairro é tão macarrônico quanto sua arquitetura de estilo indefinido e seus sotaques imprecisos.

A Bela Vista, caro escrevinhador, não mudou. Fundiu-se, em uma tentativa de reencontrar aquele bairro que até Adoniran Barbosa lamentava não existir mais.

A Bela Vista é o que sempre foi e não se impressiona com o hambúrguer gourmet ou com a cerveja barata, disfarçada de artesanal, vendida no estabelecimento que não é nem gastro, nem bar.

Fora de tom, só mesmo um texto que tenta explicar as pessoas que consomem cultura alternativa e têm apreço pela cultura de raiz.

Moço, você não era nem “projeto de vida”, assim mesmo aspeado, e Zé Celso já fazia cultura alternativa em texto de Oswald de Andrade, n’Oficina.

A Bela Vista já se costurava com fragmentos de elementos populares, antes mesmo de você fazer jornalismo sobre campeonato gay de queimada no Largo da Batata; fazer pose no Spot; ou ler a revista Vanit Fair, jogada sobre o porta-copos do jatinho que trouxe você de Nova Iorque.

Orra meu!!! Largo da Batata, Spot e Nova Iorque no currículo? E você vem me dizer que a velha e pobre Bela Vista que é a hipster da história?

Só para lembrar, o Spot, onde você foi jantar dia desses, também fica na Bela Vista e foi um dos maiores redutos de hipsters do bairro, nos anos 90, viu? Numa época em que você nem sonhava que um dia também seria hipster.

Você ainda nem pensava em tecer comentários tão profundos sobre o mundo hipster/hype, e a Bela Vista já discutia os rumos da dramaturgia brasileira e se afinava em festivais de música.

Créditos: Guian Bolisay/Flickr-Creative Commons)

Hipster, hype ou ‘meuz óvo’?

Aliás, seu blog é mais hipster do que as três casas juntas da Bela Vista que você cita no texto. Você apura com esmero os detalhes das roupas de quem fugiu do pretinho básico na São Paulo Fashion Week; celebra o primeiro aniversário da Gaymada do Largo da Batata; e dá um show de jornalismo quando descreve sua experiência na aula de atualidades para empresárias do high society (sic).

Só não esquece que aquelas mesmas bundas de mulheres poderosas, que você descreve tão bem, são as mesmas que esquentaram as poltronas de couro do jatinho Falcon que trouxe você da hypada Nova York.

Broadway brasileira ou Teatro Paramount não têm mais, na Bela Vista.

Mas pode procurar por qualquer CEP do bairro que você sempre vai encontrar um ator ou um músico que bebe até hoje daquelas águas de córregos que seguem sufocados pelas avenidas que concretaram o bairro (e continuam bebendo em botecos azulejados da Conselheiro Carrão, da 13 de Maio ou da 14 Bis).

Três décadas atrás, a vizinha aqui do prédio (que também fica na Bela Vista), escondia os cabelos sob bobes coloridos, misturava as roupas sem se importar com os tons dos tecidos e tinha um filho que era metaleiro e fazia performances de dança contemporânea no Madame Satã.

Eles, sim, eram hipsters.

A Bela Vista é tão misturada como os afro-ítalo-nordestinos que colocaram as chácaras daquele arrabalde da Pauliceia na rota da urbanização que construía São Paulo, no final do século 19.

As malocas em casarões de estilo indefinido persistem entre edifícios novos de arquitetura sem graça; a 13 de Maio resiste com sua boemia esquecida, com cheiro de anos 80; o filão ainda faz filas na porta da padaria italiana; o balde do molho de tomate sobre a cabeça de quem o carrega ainda causa graça na festa de rua que acontece todos os anos; a placa cansada segue anunciando a idade avançada da cantina mais antiga da cidade; e o samba continua ritmado na quadra da Vai-Vai ou de qualquer outro endereço das ruas paralelas.

Até o Madame Satã ainda está lá, a poucos passos do Café Piu Piu e a alguns quarteirões da Vila Itororó (que tá ficando linda que só vendo, viu?).

Porta abre, porta fecha, e a Bela Vista continua dando preferência ao que sempre foi.

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